Ao lado direito da foto, o Ceguinho Tocador e do lado esquerdo seu guia Luiz de Arimatéia. 

Os sonoros acordes emitidos pelo Fole do Ceguinho Tocador refletem a melodia da alma de quem nasceu com os olhos apagados, um divinal dom artístico e apurada audição. (Marcos Pinto - 13.09.2014).


Agradecido ao Supremo Arquiteto do Universo por ainda ser servido por memória juvenil, tenho sentido uma constante necessidade de fixar no papel um quase diálogo com tantas visões do passado, que permanecem presentes e quase vivas e visíveis aos meus olhos. São páginas escritas de forma despretensiosa e serena, no quase êxtase da minha tarde existencial, que já vai decorrendo sem mais ilusões, dentro da conformada obstinação dos que só tem a esperar, apenas, resignadamente, a próxima noite das trevas definitivas.

Nessa incontida busca e resgate de fatos protagonizados pelos ditos tipos populares do meu torrão natal, satisfaço um desígnio longamente acalantado e assentado nos confins da memória. Assim, retrato sem retoques homens e fatos em suas exatas configurações. Nessa vertente de recordações, surge a inconfundível figura popular bem representada na pessoa do CEGUINHO TOCADOR, graças à Deus ainda vivo, lépido e fagueiro em seus 67 anos de idade, tocando o seu já famoso e humilde fole de 08 baixos. Foi durante minhas perambulações pela feira da terrinha amada, que meus olhos de menino sambudo de 08 anos viram a figura cativante do Ceguinho Tocador. Um amontoado de pessoas em forma de roda, ao lado do mercado público, despertara a atenção do curioso menino. A intromissão no meio dos circunstantes proporcionou-me uma estranha sensação de alegria e apreço por aquele homenzinho de aspecto humilde. Segurava um surrado e velho Folezinho de 8 baixos, pequeno e compatível com sua compleição física. Um simples óculos escuros escondia-lhe os olhos apagados. Sobre a cabeça, um pequeno chapéu de couro a proteger-lhe do causticante sol nordestino e completar-lhe o seu visual característico de artista do sertão. À sua frente, sob o chão, repousava um surrado chapéu de palha de carnaúba a acolher minguadas moedas e raras cédulas de dinheiro daquelas pessoas de bom coração, que sabiam contribuírem para o sofrível sustento daquele humilde ceguinho e de seus filhos e esposa. A sua luta pela sobrevivência estendia-se durante o resto do dia, a perambular pelos bares e mercearias, onde tocava de forma voluntária, esperando a recompensa e o reconhecimento de seus méritos artísticos de tocador de fole. Tinha um amigo como guia, ao qual, ao final do dia, dava-lhe uma espécie de gorjeta, já que o apurado era insuficiente para comprar gêneros alimentícios para o consumo da semana.

Àquela época, a pacata cidade só vivia algo diferente e que mudava o cotidiano e a monotonia da cidade, quando chegava um circo ou um parque de diversões, geralmente instalados durante as festas paroquiais alusivas à comemoração dos padroeiros São João Batista e N. Sra. da Conceição. Em meio às festivas barracas, onde se comprava bebidas quentes (Aguardente de cana e conhaques), linguiças caseiras assadas na brasa, não raro, encontrávamos o Ceguinho Tocador, atracado ao seu fole, a exibir seu dote artístico, e com isso ganhar uns trocados.

Aí por volta do anos de 1968/1969 o famoso Cabaré de Chico Silvino encontrava-se em plena efervescência, tendo como atrativo sensuais mulheres importadas de outras plagas, como Pau dos Ferros e Mossoró. Vez por outra o Ceguinho Tocador era contratado para animar as "meninas de vida livre", com o baile começando logo no final da tarde de Sábado e descambando até o amanhecer do Domingo. O Fole do Ceguinho Tocador proporcionava um fuzuê contagiante e animado. Aqui e acolá é que ocorria um furdunço, em que algum cabra metido a besta entendia de puxar uma "lambedeira" de doze polegadas, ocasião em que era contido. Quando não parava de esboçar valentia, era preso e conduzido no inconfundível Jeep da Delegacia de Polícia. Acalmados os ânimos, o Ceguinho voltava a tocar para a libidinosa platéia. Frise-se que esse promíscuo ambiente situava-se a uma considerável distância da cidade, considerado já quase na zona rural. Esse "Complexo turistico-cabaretício" era composto por cerca de dez casas construídas no sistema paredes-meia (Casas geminadas), sendo cinco do lado direito e cinco do lado esquerdo, com a então estrada de rodagem (Atual BR-405) separando-as. Eram encravadas no terreno onde atualmente se encontram aqueles imóveis situados vizinho e antes do Colégio Antonio Dantas (sentido Apodi-Mossoró). Confesso que gostava de assistir, a uma considerável distância, o Ceguinho Tocador tocando e animando aquelas mulheres seminuas, que despertavam-me planos de navegação carnal , aprendida no Código geral da clandestinidade dos sentimentos e das volúpias proibidas para rapazotes imberbes em seus doze anos.

A necessidade de ampliar o território que proporcionava o seu sustento e de sua família, fez com que o incansável CEGUINHO TOCADOR passasse a frequentar as feiras das cidades circunvizinhas a Apodi, estendendo-se, também, às cidades de Baraúna (Dia de Domingo/ dia de Feira) e Mossoró, geralmente às Segundas-Feiras, onde sempre tem obtido êxito em suas exibições artísticas.

Para os estudiosos dos TIPOS POPULARES da nossa amada terra, é imprescindível que seja transcrito o esboço biográfico do CEGUINHO TOCADOR, elaborado de forma acurada e enriquecedora dos nossos anais históricos, pelo nosso abnegado e profícuo historiador José Maria das Chagas - que é o nosso celebrado pesquisador e amigo J. Maria. Ei-lo:

FRANCISCO PEQUENO BARBOSA, natural de Apodi, nascido a 23 de abril de 1947, filho de Alfredo Pequeno Barbosa e de Maria Francelina Barbosa, conhecido em Apodi e Região por CEGUINHO DO FOLE 8 BAIXOS. Ele é cego de nascença, mas canta e toca com seu velho fole de 8 baixos.

O acompanhante de Ceguinho é o também cantor LUIZ ARIMATÉIA DE MORAIS, natural de Apodi, nascido a 23 de fevereiro de 1966, filho de Manuel Vicente de Morais e de Maria Varela de Souza.

O ceguinho além de ser bom cantador de música é também um exímio cantador de mulher, tendo em vista que apesar de ser cego já está na quinta companheira, sendo que a atual e dona RAIMUNDA ALVES MOREIRA, nascida em 2 de fevereiro de 1957.

Apodi de São João Batista e Nossa Senhora da Conceição, 13 de Setembro de 2014.
Por Marcos Pinto - Comboieiro da Saudade.