A Velha, diante do mar lia Hemingway e ao longe via navios distantes.
ficava com os pés enterrados na areia e o olhar perdido se encantava com o mar.
Pensou no velho de “O Velho e o Mar”
cansado, com câimbras,
lutando contra um grande peixe.
Depois se lembrou do beijo no espelho,
da cerveja na roupa,
da festa sem gente.
Pensou nos amores fortuitos, com unhadas na carne.
Pensou no menino com um feixe de lenha,
precisando vender pra não morrer de fome.
Depois no garoto que cheirava cola e sentava na porta pra olhar a menina;
seu olhar era triste, seu rosto amarelo, sua alma vazia como seu estômago.
Lembrou da jangada com peixe.
no negro valente, vadio, sadio,
parecendo um Deus ébano com calça listrada.
Pensou na viagem que fizera a Bahia para conhecer irmã Dulce, a santa dos pobres;
No abraço que deu e no que recebeu.
Na palavra que ela disse olhando seus olhos.
Lembrou do amigo que adorava Bethânia,
ele era bonito, mas tinha um riso triste.
Pensou em cabana, na Havana de Martí, nos recortes de jornal da província
e lembrou-se da noiva sem vestido branco, entrando na igreja e o pastor esbravejando;
gritando ridículo “irmãos o diabo chegou !”
Pensou na amiga que em casa vivia, ouvindo música e lendo revistas;
Seus olhos eram oblíquos como os de Mona Lisa,
retratada nos versos de Luis de Camões: “um medo sem ter culpa; um ar sereno”.
De repente lembrou-se do pastor protestando, brigando no rádio;
Tinha uma fé sem graça e uma mulher sem afeto.
Pensou na criança que adorava cerveja e na menina com isopor na parede,
cheio de fotografias que mostravam os dentes.
A menina era linda, mas voluntariosa e não gostava do vestido azul.
Pensou nas mulheres se arrastando nas grutas, dando risadas com a história dos índios
E no homem feio que comia feijão e ao lado a menina que pensava em sexo.
Lembrou dos encontros na casa do norte onde o velho amigo contava anedotas,
falando em teatro e brigando com o outro, rindo da história naquele avião,
do garoto magro com medo de tudo, ele era bonito e gaguejava,
mas amava e queria o amor só para ele.
Pensou na moça da expressão de parede,
com uma dignidade eloqüente como um quadro de Gogh.
ela falava pouco, mas de tudo sabia;
Lembrou do político com a mentira entre as pernas,
Se achando um Deus num País de dementes.
Lembrou-se do carro subindo a ladeira e na moça triste que só ria com os olhos.
Pensou na frase que lera em Nietzsche “mas quem sabe, hoje, o que é solidão?”
Lembrou do Cristo desenhado na pedra e na cidade fria de pessoas sutis;
Na mulher de idade que amava o menino.
Pensou no seu livro e no livro dos outros e achou engraçado querer ser poeta.
Imaginou-se feliz, com o seu lírico carro velho e o seu violão idílico,
na casa branca da rua.
Como o rio de Eliot no seu Sermão do Fogo não suportava lenços de seda e garrafas vazias,
Mas achava engraçadas as damas vestidas, de forma esquisita e sapatos apertados,
Um em pé, nos palanques, com os braços cruzados, ao lado de homens em camisas de linho.
Pensou na mulher do marido emprestado que era feliz com o marido que tinha.
Pensou nos inúteis papéis da Pública Casa Azul, no olhar triste dos operários com fome,
No silêncio medroso do homem venal, que com o filho doente queria o emprego;
Lembrou dos vaidosos ostentando seus carros,
e no rapaz orgulhoso porque tinha um relógio;
No trabalho sério e mal interpretado
E também na frase ridícula que diziam pra ela: “você é uma guerreira de grandes causas!”
A velha ria com essa bobagem! E achava engraçado essa frase sem graça,
dita por pessoas que queriam agradar, mas que na verdade não falavam sério nem para o
povo que pedia a esmola !
A Velha achava bonita a firmeza nos olhos, a grandeza da alma.
O caçador de orquídeas e antúrios.
Ou a imagem quieta no altar da igreja,
A fé da velhinha na procissão, ou a amiga sem fé que rezava de dia,
O bêbado pobre que não queria ser rico,
O beijo histórico de Scarllet O’Hara na beleza do filme “e o vento levou”,
A indecência da lua nas noites românticas,
A história de Kafka na Colônia Penal;
As gaivotas livres de Fernão Capelo;
Os acordes da flauta interpretando Vivaldi;
O jovem pastor emocionado, falando de Deus como quem o conhece.
A casa de taipa do casal de velhinhos, que não sabia ler e enfeitava a parede
Com retratos de Cristo e de Che Guevara, porque achavam os dois parecidos.
Depois veio o vento, o tempo, sem sobrenome com um codinome sem ser beija flor.
Amor. Era tudo que tinha na vida,
e quando dobrava a esquina, dentro da calça florida, sempre avistava a figura do olhar de punhal, tramando o mal, e ao lado o garoto com espinhas no rosto, apaixonado pelo homem da loja. O pai não sabia, nem a mãe percebia que o garoto era triste e roia as unhas, e a sua tristeza excitava a figura que não tinha ninguém mas usava aliança.
A velha ria sem dente de ouro e pensava nas ilusões que vendera fiado, aos mercadores
do saber desbotado e no riso cínico dos retardados mentais, mas letais, venais;
Onde o mais importante era ter conta em banco com o coração implodindo sem amor.
E nem se imaginavam numa Macondo ridícula, onde o povo era triste e se fingia feliz,
Como aquele rapaz , que era algo no Banco, assinando o cheque com cara de chique
Provocando inveja nos pobres de Jó,
E no chefe ridículo na repartição mal repartida,
Dividida e feia, como o assessor de discórdias
E que no fundo eram bêbados, nas suas arrogâncias vomitando sempre pra dentro de si, causando pena aos que tinham grandeza.
A velha ria com pena do outro, que não era capaz de amar a si mesmo
E depois se lembrava do gordo feliz que não tinha dinheiro, mas tinha alegria.
Mentia que fazia dó.
A velha ria pensando em tudo
E olhando para o mar repetia Pompeu:
“Navegare Necessse Est
Vivere Non Est Necesse.”
Depois dormia.

O interminável poema “A velha e o mar ” do livro Contraponto de Dodora, lançado em 1998)