Toda cidade pequena sempre tem um doido oficial que não assusta ninguém; um intelectual de verdade, ou de fachada, mas que sempre anda com um monte de papel debaixo do braço; um motorista que não tem carro e nem emprego, mas que já dirigiu quase todos os carros da cidade; um professor temido pelo saber ou pela chatice e que adora reprovar aluno; um hotel central; um bar com uma das frases: “ordem e respeito”, “familiar” “não fale fiado evite decepção”, um homem que gosta de usar roupa branca; no mínimo uma família bem tradicional e que tem em casa uma cadeira de palhinha; uma esquina ou uma calçada onde se sabe de tudo;

Uma pessoa temida pela língua maldita; um casal de namorados que não tem fim de casar; uma turma bem pesada que nem liga para chatice da cidade e sempre comemora tudo com uma festa; um cabra bem besta que quando se aproxima todo mundo vai embora; uma pessoa aposentada que todos os dias, à mesma hora, põe uma cadeira na calçada, toma café e conversa com os mesmos amigos; um chato que sabe tocar alguma coisa e sempre chega onde não é chamado e daí a pouco está comendo, bebendo, cantando e íntimo de todo mundo; uma pessoa que nunca se convence que está errada e tem raiva de Deus e o mundo; uma loura oxigenada que se acha o máximo; um carro velho bem barulhento e conhecido (geralmente é um carro azul desbotado); uma pessoa bem amiga de todo mundo e que sempre gosta muito de dar risada; um rapaz que se acha o melhor partido da cidade; um político que aperta a mão de todo mundo ou que só cumprimenta dando um tapa bem forte nas costas da gente; uma pessoa que usa um óculos com muito grau e que só vive piscando os olhos; uma pessoa que só vive rezando mas todo mundo acha que ela vai para o inferno; um metido a rico que quando chega nos cantos fala bem alto ou faz de tudo para a gente perceber que ele chegou de carro; mas principalmente um mentiroso e daqueles que não tem o menor pudor de dizer que se lhe oferecessem o dinheiro do mundo inteiro ele recusaria para não ter que mudar da sua cidade.

Naquela cidadezinha chamada Idopa tinha tudo isso e muito mais e um mentiroso oficial chamado João. Ele era um cabra BOM, trabalhador, direito, todo mundo gostava dele e já tinham até se acostumado com suas mentiras por isso ninguém deu confiança quando ele disse que tinha acertado na Pelé & Sena. O mentiroso jurou pela alma da mãe, sacramentou, contou essa história a Deus e ao mundo mas não tinha jeito, ninguém acreditava, nem quando ele mostrava um papel com uns números e o seu nome. Os dias se passaram e nada; a história da Pelé & Sena foi virando folclore e no final nem o mentiroso acreditava mais na própria história. Pois não é que um dia aparece um telegrama na casa do João avisando que ele tinha apenas três dias para comparecer ao Banco e retirar uma fortuna em dinheiro creditada a favor de João Alves, (que era o nome completo do mentiroso) e constando justamente o seu endereço! Foi um movimento danado. A familia do peste arrumou um dinheiro emprestado e o mandaram para a capital para receber a milionária quantia. 

Quando João chegou no Banco e se apresentou como o milionário da sorte o gerente levou-o para uma sala particular ofereceu cafezinho, fez muito agrado, falou nas vantagens das aplicações e da garantia no seu Banco e depois de muito rapapé pediu os documentos do João para a conferência. Foi ai que a vaca tossiu. Não é que o nome do mentiroso sequer era João, mas sim Çelso (iniciado com cedilha mesmo). Quando o medonho era criança falava dormindo e sua mãe, inocentemente, havia feito uma promessa que se ele deixasse de falar dormindo passaria a chamá-lo João, em homenagem ao padroeiro da cidade. O santo atendeu e João que mentia desde menino achou ótimo ter que inventar o próprio nome, por isso assinava João Alves, ao invés de Çelso Alves, seu nome verdadeiro. Claro que o Banco não aceitou pagar uma quantia tão alta a uma pessoa cujo cartão tinha um nome e o documento outro nome diferente.

Até hoje o coitado luta na Justiça para provar que Çelso e João é uma mesma pessoa e a justiça não muito chegada a velocidade, aproveita para não acreditar que seja possível alguém ser batizado como Çelso (com cedilha) e ter o nome trocado para João Alves e ainda por cima ser muito mentiroso.

Crônica do Livro "Contraponto'' de Dodora, publicado no ano de 1998.